segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Desejei

Desejei,
naquela noite fria, ter meu corpo despido ante os teus olhos e sentir o calor dos teus dedos, centímetro a centímetro, desvendando os mistérios da minha pele, os relevos do meu corpo.

Desejei
que os teus olhos, fascinados, mergulhassem no desafio de perceber cada mínima reação minha ante o ímpeto do teu desejo.

Desejei,
como quem tem sede no deserto, que teus lábios me experimentassem, apreciando meus sabores.

Desejei
teus olhos penetrando a minha alma e o teu riso fazendo emergir os meus mais profundos rios e a volúpia dos meus mares.

Desejei
a arrebentação das tuas ondas no meu corpo, a tua firmeza quebrando meus medos, a tua suavidade desfolhando minhas pétalas, uma a uma.

E como há muito não me ocorria, não tive receios dos meus desejos, fiz-me soberana em cada um deles, vesti-me de sua autoridade, neles ergui o meu altar e fiz-me deusa de mim, devotei-me em meu fogo, minhas fontes de águas, meu corpo fértil, minha respiração e suspiros ofegantes e a paixão de ser, mulher.

sábado, 8 de novembro de 2014

#2 - Peixe, Nada

O peixe estava sufocando. Não de repente, claro. Mas quando ele se deu conta de toda a poluição ao seu redor, naquele tempo passado considerado o seu habitat perfeito, só restava uma possibilidade: pedir aos céus uma intervenção do além, já que por si só (embora talvez de modo equivocado) ele considerava não ser possível sair daquele rio. Estava condenado à morte e já se sentia assim, morto.

Mas não é que aconteceu?

Numa noite, um tornado? Tempestade? Tufão? Tsunami?
Talvez uma mescla de todos estes fenômenos da natureza.

O peixe finalmente estava livre do rio, daquele rio. 

Mas, peixe precisa de rio. E no meio daquela escuridão o peixe se sentia na água, óbvio, ou já teria morrido. Apenas não sabia ainda que águas eram aquelas. E se eram aquelas as águas em que deveria habitar. 

De repente ele tinha a possibilidade (mesmo que nunca se tenha sentido livre para isso) de escolher. 

Como escolher?
O que escolher?
Por que escolher?

Um critério havia. Ponto inegociável: as águas não poderiam ter poluição, não aquele nível que anteriormente o sufocava e as regras do rio precisavam ser diferentes. Como? O peixe não sabia, apenas precisavam ser diferentes.

Muitas dúvidas e a certeza única, companhia constante do peixe - PEIXE, NADA.

O peixe se rebate, rebate, rebate. E ele cansa. Será?

Há vezes em que parece ter morrido. 

O peixe precisa decidir. Ele sabe: ou aprende a ser espectador ou reaprende a nadar , ali mesmo naquelas águas ou precisa achar outras águas que ateste limpas, onde nadar. Do contrário, morrerá, talvez não dos efeitos da poluição anterior, a não ser a inevitável contaminação ainda presente no seu interior - da qual é impossível livrar-se assim, de modo tão breve (considera, o peixe, terá que se tratar até o fim dos seus dias).

E o peixe se rebate, rebate, rebate. 
Morrerá pelo julgo da inadequação, pelo sufoco do que sonha pro seu rio não percebido ali, pelo medo de assumir: Peixe, nada.

Ah, essa incômoda sensação da necessidade de ser e não apenas pertencer e de não saber afinal o que se dá e porque a sua maestria, naquelas águas parecia tão inútil agora.

O peixe volta a tentar nadar, mas só se rebate, rebate, rebate.

Peixe nada, essa é a sua natureza. Se não nada, peixe morre ou é pego pra prisão de algum aquário, mas no fim ele só se rebate, rebate, rebate.

Suas guelras ainda estão coloradas, pela força de teimosia ou, como diriam alguns, vocação de nadar contra a maré. No fundo, bem no fundo das suas agora rasas convicções, o peixe sabe, não conseguirá se rebater por muito tempo. O peixe sabe mais, o rio é diverso e seja limpo ou poluído, peixe não vive sozinho, ele precisa de um cardume e sabe também, sejam quais forem as águas em que estiver, haverá predadores. Aliás, talvez seja este peixe, inclusive, um predador e por isso o seu medo de se decidir porque ele se admite peixe (e não poderia ser diferente), mas não se permite ou não se deseja, predador porque este peixe pode escolher não ser predador e não se permitirá ser.

O peixe acha que é duro ser peixe e se rebate, rebate, rebate. Mas ele é peixe e não há nada que possa fazer para mudar isso.

Peixe só tem um caminho: nada.

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

#1 - Meus Dois Filhos

A maternidade é nobre, talvez seja assim a melhor definição que eu encontre para ela. A questão toda, é que eu ainda não a experimentei, mas nutro esse sonho e por ele suspiro todos os dias e até já tenho os nomes para os meus filhos: Esperança e Amor. Já os vejo tão claramente, que sou capaz de senti-los aqui no meu colo, fazendo graça ou ali, correndo no quintal.

Esperança é uma menina de pele clara, bochechas rosadas, cabelos levemente encaracolados e ruivos, fala apressada e é até engraçado, porque ela quase sempre atropela a própria fala de tão vibrantes e velozes os seus pensamentos. Ela também tem mãos macias, parecem de veludo e quando ela me toca, nossa, sinto-me transportar às nuvens, como se eu passasse a ser também, bem leve, e começo a ver tudo de outro ângulo. Ah! Esperança, minha menina é doce, meiga e, pasmem também travessa. Não poderia ser diferente!

O meu menino é o Amor, e ele é um amor, assim, inexplicável. Tem uma inteligência irracional, se é que isso é possível, está sempre me surpreendendo, tem uma energia, uma força! Olha, muitas vezes, ele e a Esperança estão brincando e ela pega no sono de exaustão, mas ele continua lá, irredutível na sua energia e capacidade de se refazer, pois é assim que o vejo, o tempo todo se refazendo, quando cai, quando se machuca, quando perde algo, quando não pode ter algo, quando as coisas são estão do jeito que imaginávamos. Enfim, talvez ele devesse se chamar refazimento. Ele é moreno, cabelo pretos, olhos bem grandes, covinhas sedutoras nas bochechas e no queixo, claro, para ficar mais charmoso, e no lugar em que ele chega as coisas mudam, é como se ele tivesse um ímã, os olhos inevitavelmente, se voltam para as coisas que ele faz, às vezes, cada estripulia que eu não consigo acreditar.

Uma coisa incrível e às vezes, até assustadora, é que meus filhos são muito serelepes, mas quando falam comigo parecem adultos. Não sei ainda se isso é bom ou ruim. Na verdade, eles têm um dom especial de falar com crianças, como eles são para mim – crianças, e falar com adultos como se adultos fossem.

Eu e os meus dois filhos, saímos sempre para a cidade que fica aqui perto, um pulinho, embora prefiramos o campo, digo, eu prefiro, porque no fundo, eles – eu acho se darão bem em qualquer lugar. Mas enfim, nós moramos no campo e sempre estamos na cidade, e foi em uma dessas idas que eu percebi um quê de agitação, diferente do habitual em Esperança. No fim, ela estava pálida, mas continuava sobrenaturalmente, e não sei por que, num esforço gigante por sorrir.

Você tem ideia do que é ver sua filha querida, tão linda, que tinha perfeita saúde, do nada, perder o brilho e começar a carregar aquele semblante pesado da morte? Pois é, era assim que eu me sentia, com um aperto no coração. Simplesmente, inexplicável!

- Esperança, filha, fala para a mamãe o que você tem! O que aconteceu?

- Não sei mamãe, eu estava no parquinho, e fui brincar com uma garotinha e daí, eu comecei a ficar assim, fraquinha, fraquinha. Tá tudo escuro mamãe. Tá doendo mamãe. Eu quero que você me abrace, por favor, mamãe. Por favor!

- Mas, filha, quem é essa garota? O que ela fez?

- Mamãe, a gente só estava correndo, brincando de mãos dadas, igual eu faço com a Alegria e a Fé, nada de diferente. A única coisa que sei é que ela se chama Angústia e que é filha da Dona Ansiedade, vizinha da gente!

- Mas filha, eu já falei para você que não deve brincar com estranhos! Eu falei que você tem quer tomar cuidado. Ai, meu Deus!

- Mãe, eu não sei o que aconteceu, pode não ter sido ela e outra, ela não é estranha – é nossa vizinha, e como eu vou conhecer outras crianças se eu só brincar com as que eu conheço? A senhora nunca se machucou num parquinho, mamãe?

- Já filha, já....muitas vezes. Mas...

- Mas? Foi só um machucado, mamãe, já vai passar. Só não me largue, por favor, e me leva para casa, eu quero segurar na mão do meu irmão.

Às pressas voltamos para casa, Esperança ainda estava um pouco fraca, mas a sua cor já voltava. Chegamos a casa e eu a coloquei para descansar e para minha surpresa, Amor também não estava bem. Ele estava gelado, tão gelado que parecia um defunto. Eu quase perdi o chão.

- Mamãe, você voltou? Eu não disse pra senhora que eu e Esperança temos sempre que ficar juntos? Quatros crianças vieram aqui, mamãe, e falaram tantas coisas ruins, e até deixaram uma carta. Eles eram bem menores que eu, mas fui pego de surpresa e eles me bateram muito forte e me machucaram. Meu corpo tá muito dolorido. Lembra mãe, que eu falei que eu e Esperança temos que ficar sempre juntos? Lembra?

- Filho, filho, calma, não precisa falar nada. Nós estamos aqui novamente, depois você me fala deles.

- Está bem mãe, mas deixe-me segurar a mão da minha irmã, então!

Eu levei Amor para o quarto da Esperança e os coloquei na mesma cama. De mãos dadas eles dormiram, e eu fiquei ali, observando-os até que o meu coração ficou tranquilo novamente quando os vi ganhar cor outra vez e senti o calor nos seus corpos.

Agora, com calma, fui ler a carta de que falara Amor. Havia tanta rispidez, dureza, incompreensão, intolerância. Não à toa, Amor ficara tão abatido e machucado. A carta era assinada por dois garotos, Rancor e Ódio, e duas garotas, Inveja e Violência. Sabe o pior? Eles se deram ao trabalho de colocar fotos pessoais na carta, e eram bonitos, sorriam, pareciam crianças inteligentes e divertidas. Já era noite, eu estava realmente muito exausta e o cansaço me venceu. Adormeci ali mesmo, no sofá.

No dia seguinte, um sol forte se levantou e foi ele o meu despertador. Acordei um tanto atordoada.

- Nossa! Eu dormi. Nossa, dormi e muito. E sonhei esquisito!

- Não, Vida, você não dormiu, apenas experimentou um impacto tão grande que não se apercebeu do seu encontro com o Tempo, de como vocês eram apaixonados e do quão felizes foram, especialmente quando nasceram os gêmeos. Parecia que toda aquela energia nunca passaria. Mas passou, e talvez, Vida, esse estado de não perceber os momentos e às vezes se perder, seja em razão das constantes brigas suas com o Tempo. 


Será que não é hora de você repensar e se reconciliar com o seu parceiro, afinal, vocês tem dois filhos tão lindos. Eternidade só há uma, eu. Mas você e o Tempo passarão. Aproveitem o instante com as crianças. Eles serão maiores que você e o seu Tempo, e só através deles, vocês poderão viver um pouco de mim, eternizando-se. Por isso os dei a vocês para que fossem plenos enquanto aqui estivessem. 


Mas lembre-se, há uma liga entre eles que extrapola o seu entendimento, ou seja, eles precisam viver juntos o tempo todo, pois um dá força ao outro. Embora, entenda, chegará uma hora que a esperança partirá – é apenas para que você saiba, porque será depois de você e em cada ser que você estiver, mas o Amor permanecerá, renascendo nestes mesmos seres e fazendo a Esperança vir aqueles também e aí, neles se multiplicando. E se você, de algum modo esquecer isso, aquelas crianças más se tornarão mais fortes que os seus filhos e serão elas, que se multiplicarão a partir de você e a sua morada não será mais o campo da Paz, como tem sido até agora, mas a cidade do Desespero, como no outro dia em que você esteve lá e viu Esperança enfraquecer e o Amor, mesmo em Paz estará condenado a viver, frio, como você o encontrou ao voltar da cidade.